Quem não conhece bem o histórico da evolução da educação pública no Brasil mal tem noção do que se vai aqui tratar. Falamos da localização do mais significativo e emblemático prédio público na área da educação da Província de Santa Catarina, e talvez mesmo do Brasil, em todo o século XIX. Este prédio público foi palco de uma verdadeira revolução educacional, desgraçadamente interrompida sua trajetória inovadora, a conta do predomínio de arcaicas formulações educacionais vigentes e do domínio de lideranças políticas emergentes desprovidas de noção sobre responsabilidade na gestão pública.
Estas formulações educacionais estavam acomodadas no conservadorismo radical do modelo português de governo, impostas desde a implantação de seu domínio no Brasil, no período Colonial e que sobreviveu pós independência no período Imperial, seguindo República adentro. No reduto da educação preparatória sobretudo o conservadorismo burocrático-religioso foi razão de estado e de grupos de interesse definidos, tanto na esfera pública quanto privada.
Eis que em 1852-53 as circunstâncias operam e uma grave epidemia de febre amarela acontece em Desterro, atingindo padres professores do Colégio dos Reverendos Padres Jesuítas, detentores do monopólio da educação pública, que, perdendo seus quadros vem a declinar de continuar com a concessão.
Diante da situação e determinado a restabelecer o ensino público o mais preparado, mais avançado e lúcido dentre todos os Presidentes desta Província, João José Coutinho, intui e toma a decisão até então sequer cogitada de propor a continuidade da necessária educação pública através da opção laica, isto é, não religiosa.
Vai então surgir na cena, após negociações reservadas com Hermann Blumenau o Doutor Fritz Müller. Ele por sua vez decide aceitar o convite visualizando nele também uma singular oportunidade de prosseguir e ampliar seus profundos interesses científicos no litoral a partir da Ilha de Santa Catarina. Claro que nutrindo a esperança de liberdade, para ele tão importante quanto o ar que respirava. E como sabem os estudiosos da história da educação na Província e no País, para ser o principal protagonista de uma iniciativa admirável de fundação deste novo modelo educacional público preparatório laico. Nem todos estes estudiosos colocam as coisas nos seus lugares, sendo condescendentes e considerando marginalmente a revolução que se apresentava no campo da educação pública. Fica-se com a impressão que é natural e aceitável que só se poderia esperar o que aqui fosse naturalmente permitido pelos detentores de influência e poder, por facções políticas, o clero e as ordens religiosas, parte da imprensa e as fortunas influentes. O Presidente João José Coutinho e o cientista e educador Fritz Müller foram os magnos personagens deste esforço modernizador, nos anos 1856-1864 na Província. Ambos merecedores de altas homenagens pela dimensão e ousadia que protagonizaram. Tivéssemos de destacar personagens ilustres e verdadeiramente influentes no esforço modernizador no século XIX na Província de Santa Catarina, o quadro formado pelos dois, e mais pelo genial poeta João da Cruz e Sousa e seu protetor Francisco Luiz da Gama Rosa ocuparia a frente, como o mais importante.
Prosseguindo, onde exatamente funcionou o Liceu Provincial nos breves anos de sua existência como sede da solução educacional laica?
Vejamos então: Fritz Müller mudara para Desterro em 1856; o diligente Presidente Coutinho equaciona a manutenção do ensino público preparatório que estrara em colapso na solução via os Reverendos Padres Jesuítas com a introdução pioneira e ousada do ensino não religioso. Este processo foi liderado na sua curta trajetória por Fritz Müller naquele Desterro de então, a partir de 1857, no criado Liceu Provincial que se instalara no imóvel adquirido da Ordem dos Jesuítas pela Província.
Coutinho acabara de implementar a Biblioteca Pública e foi o promotor assumido tanto da solução da educação laica e calcada em padrões europeus quanto da proteção e acreditamento do próprio Fritz Müller e do conjunto de professores novos do Liceu, tendo contra a iniciativa tudo e todos, exceto algumas lideranças intelectualizadas e grupos de vanguarda com menor influência. A se notar o longuíssimo governo de Coutinho, que durou de 1850 a 1859, propondo-se que seja objeto de pesquisas a contínua troca de Presidentes da Província de Santa Catarina num rodizio escandaloso, que pouco serviu à população e tudo serviu aos interesses de grupos dominantes com influência econômica, política e religiosa.
Coutinho quase conseguiu o feito de implantar a revolução educacional de verdade no ensino público, aqui e no Brasil. Teria inaugurado a matriz de uma mudança educacional modernizadora urgentemente necessária. A notar também que na sucessão da Presidência da Província, Francisco Carlos de Araújo Brusque, salvou a honra tradicional da casa, ao “reorganizar” o Liceu, impondo a volta do velho modelo de uma educação a serviço de seguir produzindo agentes para o serviço público e devotos convictos. E, naturalmente achou por bem sucatear desde logo o laboratório de Física e Química e o Jardim Botânico que Coutinho providenciara para atender Fritz Müller no Liceu Provincial.
E assim, a mais ousada e revolucionária iniciativa na educação pública preparatória que conhecemos, que deveria ter sido imediatamente assumida como meta central do esforço civilizatório local e do país caiu por terra e vai ser sepultada no esquecimento, como mero passo educacional abortado pelos caprichos da sinuosa história política local, onde tudo se permitia, se explicava e tolerava. Podem os leitores imaginar o que teria acontecido se esta iniciativa modernizadora na educação pública do Presidente Coutinho com Fritz Müller tivesse prosperado? Dirigida por pessoas altamente qualificadas, com integral e assumido apoio do governante, os melhores professores da Província e talvez mesmo do país, adotando modelos de sucesso europeu, com matérias e didática adequadas ao progresso real na formação de jovens, com a manutenção dos fundamentos clássicos educacionais mas com a liberdade no conhecimento, e os avanços na ciência, na gestão da colonização produtiva, na indústria moderna, no comércio e na gestão pública, e abandonando as limitações dogmáticas arcaicas, antiprogressistas e ainda impregnadas das sombras inquisitoriais não de todo esquecidas.
Como não flagrar-se diante deste espantoso fracasso na modernização e atualização na educação pública? Não parece razoável curvar-se ao fatalismo da aceitação do retrocesso como coisa normal e não passível de ampla e profunda revisão crítica e histórica.
Voltando e respondendo sobre a localização do Liceo, vide imagens acima. Quem acessar a “Planta Topográfica da Cidade de Desterro”, feita em 1876 a mando do Presidente da Província Alfredo d’Escragnolle Taunay, encontrará a resposta. Acesse no link http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_cartografia/cart516191/cart516191.jpg.
Esta Planta magnificamente executada é um documento imprescindível para conhecer o status da cidade naqueles anos. Praticamente tudo está levantado e registrado nela. Incidente por incidente, rua por rua, largos, travessas, becos, caminhos, praças, logradouros, chácaras com o nome de cada proprietário, prédios públicos, cemitérios, olarias, igrejas, templos maçônicos, e ainda casa a casa, prédio a prédio, em escala de 1 cm = 6 m. O rigor na execução é de tal ordem evidente, que não seria exagero afirmar que bem pouca coisa tenha escapado ao registro cartográfico. Rigor que vai em alguns casos às plantas baixas de certos sítios e imóveis. Os engenheiros, Major Antônio Florêncio Pereira do Lago e Carlos Othon Schlappal realizaram o trabalho.
Dentre muitos dados, estão anotados na Planta: 1. Era composta a cidade por duas Freguesias, Nossa Senhora do Desterro e São Sebastião da Praia de Fora; 2. Contava com 8.608 habitantes; 3. Oito Igrejas; 4. dois Cemitérios, católico e evangélico; 5. Duas Lojas Maçônicas; 6. Cento e vinte seis construções sobrados; 7. Mil seiscentos e vinte cinco construções térreas; 8. Na instrução pública contava com 1 Ateneo Provincial para matérias preparatórias, 4 Aulas Primárias masculinas e 4 femininas; 9. Na instrução particular contava com 1 Aula de segundas letras, 1 de desenho, 3 Aulas Primeiras Letras masculina e 3 femininas. 10. Uma Biblioteca Pública, funcionando nos fundos do Palácio do Governo, com Aula Pública; 11. O Teatro Santa Isabel; 12. Dois Hospitais, de Caridade, e Militar da Marinha.
O detalhamento vai ao ponto de permitir uma prazerosa viagem no tempo e no espaço urbano de então. Baixada a Planta pode-se sobrepor um mapa atual ampliando a pesquisa nesta prazerosa viagem imaginária.
O mesmo prédio que abrigava nos anos anteriores a chegada de Friz Müller (1856) o ensino dos Jesuítas, abriga o Liceu Provincial criado em 1857 e depois em 1874 passa a abrigar o seu sucessor o Ateneo Provincial. A Planta onde se observa estar locado este Ateneo, num quadrilátero, é a Praça Getúlio Vargas, e que está em frente ao Quartel da Polícia Militar e Corpo de Bombeiros. Está também locada nesta Planta a já existente casa hoje ocupada por um Restaurante, agora na esquina, e justo quase em frente ao conjunto do Ateneu.
Nas ilustrações deste artigo é bem fácil identificar o local e a locação do prédio, que em fotos também é mostrado. Nas fotos vê-se o prédio do Liceo em vista frontal e em seu lado a pequena construção que abrigava os pertences do Jardim Botânico que Fritz Müller implantara no educandário. E na foto panorâmica, vê-se o mesmo prédio do Liceu e mais outro prédio que um dia a pesquisa continuada vai nos dizer se era a residência dos Jesuítas.
Motivados pelos argumentos elencados no princípio deste artigo e acreditando nas indicações mapeadas e com alguma pesquisa qualificada se poderá vir a identificar os vestígios dos fundamentos da antiga construção, na própria Praça Getúlio Vargas.
Faz-se aqui também oportuno recomendar o conhecimento do Mapa da Província de Santa Catarina, de 1868 (ver reproduções), constante do “Atlas do Império do Brazil” (https://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/179473, pág.61) mandado executar por D. Pedro II, organizado por Candido Mendes de Almeida, obra disponibilizada para consulta aberta pela Biblioteca do Senado Federal. Neles é mostrada a área urbana da Cidade de Desterro e no recorte, vê-se bem isolado e em área não urbanizada o prédio do ainda chamado Liceo Provincial. Observe-se que não havia sido construída a casa ocupada pelo Restaurante citado, que na Planta de 1876 aparece, sugerindo o rápido crescimento da cidade naqueles anos.
Tendente mais a confusão que ao esclarecimento, ver também a reprodução ao lado, da pintura do notável artista Eduardo Dias, uma bela obra feita muitos anos depois da demolição do prédio do Liceu e que indica a imaginação e a criatividade ingênua como ele trabalhava, sobre fotos ou gravuras que usava como modelo, e atribuindo elementos sem confirmação histórica a que não tinha acesso.
Fechamos este artigo propondo um desafio para espíritos ousados capazes de reconhecer méritos de pessoas que contribuíram com o esforço progressista da cultura, da educação, dos costumes, da gestão pública, da ciência, do conhecimento e da liberdade. Vamos um dia dar início a um movimento que, usando tecnologia de prospecção não invasiva, localize os vestígios dos fundamentos do prédio do icônico Liceu Provincial, palco de tão importantes acontecimentos da vida educacional do país, locando-o na área da Praça Getúlio Vargas? Estão lá.
Justiça também faríamos com um monumento público em memória de Fritz Müller na cidade. E por último, aos que não tiram o chapéu para o ditador Getúlio Vargas, tem melhor nome para esta Praça. Como para esta Cidade de Floriano.
(Iconografia com a contribuição de Bruno K. Kadletz).
Coordenador do Grupo Desterro Fritz Müller / Charles Darwin 200 anos
mullerfritz200@gmail.com
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