Para compreender as razões que levaram Müller abrir mão do diploma de Medicina, é necessário que se volte no tempo, ao final do medievo, quando muitas estruturas que alicerçavam aquele longo período, iniciavam seu processo de ruptura que só estaria consolidado quatro séculos mais tarde.

No artigo Contextualizando o século XIX, Sávio Laet de Barros Campos, explicita que o enfraquecimento do teocentrismo – um dos fortes pilares da era medieval, foi iniciado no limiar do século XIV com o frade Orckham, defensor do nominalismo o qual preconizava que ideias, conceitos generalizados e universais não passavam de meras entidades linguísticas sem existência autônoma quando fora da mente que as concebeu. Resumidamente, para ele, o Homem teria o direito de decidir o seu destino, sem nenhuma imposição da sociedade e desta forma, a liberdade era fundamental no exercício do livre arbítrio e por consequência pilar de suas escolhas e sua trajetória de vida.  Sua doutrina abalou profundamente várias correntes de pensamento calcadas em conceitos teocêntricos, e lançou os fundamentos para o protestantismo e o agnosticismo de Kant.[1]

Foi um longo caminho até o século XIX quando, para Campos, o ateísmo foi oficializado, promulgado e instituído, à luz da razão e da ciência que proclamaram a independência do homem à ideia de Deus. Para Abbagnano, citado por Campos,

“o ateísmo não é uma profissão de fé numa concepção de mundo oposta àquela centrada na existência de Deus, nem na condenação da religião e da fé, que sobre essa existência se assentam. Ele é sobretudo, uma situação cultural, que por alguns é serenamente aceita, por outros, sofrida, e por outros, integrada ou corrigida com novos tipos de fé e esperança”[2]

Em seu artigo, Campos (muito didático nos conceitos apresentados) ainda nos concede o seguinte:

“Na verdade, o ateísmo é um fenômeno multiforme. Ele pode apresentar-se de modo mais filosófico e teórico, como em Nietzsche, Freud, Russel, etc, e assim restringir-se ao meio acadêmico, pode ser ainda ativo e militante, como o ateísmo de linha comunista, ou pode mesmo ser simplesmente um fato social, isto é, um ateísmo prático, que não nega nem se levanta contra Deus diretamente, mas integra-se à vida da pessoa, fazendo-a viver como se Deus não existisse de fato. É este último modo de ateísmo que atinge com mais força o povo em geral.”

Müller proveniente de um ambiente familiar permeável ao pensamento científico e calcado em padrões luteranos – mais tarde formado em filosofia na Universidade de Berlim, possuía um arcabouço consistente para seu pensamento vanguardista e, incompreensível para quem não tivesse, como ele, tal embasamento. Como mesmo afirmava, vivia de acordo com suas crenças, jamais proferindo algo que estivesse distante do seu coração.

Ser ateu no século XIX era quase uma condição indispensável para ser aceito nos meios acadêmicos e, não só, mas perante si mesmo. Afirmar-se ateu significava que tinha rompido com doutrinas e crenças alicerçadas em dogmas e superstições.

À luz destas pinceladas sobre o ambiente oitocentista não é difícil entender o posicionamento de Fritz Müller, aliás, tão claro que brevemente se faz compreensível.

Os documentos obtidos junto ao Arquivo da Universidade de Greifswald em 2018, posteriormente traduzidos pela Dra Katharina Schmitt-Loske, do Koenig Museum, vinculado à Universidade de Bonn, é possível acompanhar a trajetória do pedido de Müller para alteração do juramento para exercício da profissão de médico até sua recusa em proferi-lo a partir das negativas provenientes das instâncias competentes, ministérios imperais e a Universidade de Greifswald.

[1] CAMPOS, Savio Laet Barros. Contextualizando o Século XIX. Artigo disponível em https://pt.scribd.com/document/38149352/Artigo-Contextualizando-o-seculo-XIX-Savio-Laet-de-Barros-Campos. Acesso 14 jun 2022.

[2] “ABBAGNANO, Nicola. L’uomo progetto. In: MONDIN, Batistta. Quem é Deus? Elementos de Teologia Filosófica. 2ª. ed. Trad. José Maria de Almeida. São Paulo: Paulus, 2005. p. 128.

Universidade de Greisfwald
Foto: Ana Maria L. Moraes

Arquivo da Universidade Greifswald
Foto: Ana Maria L. Moraes
Biblioteca Greifswald – interior
Foto: Ana Maria L. Moraes

Desta forma, o sonho de tornar-se médico e integrar expedições científicas e explorar novos ambientes, foi deixado de lado e somente se concretizou de outra forma, ao emigrar para o Brasil.

Decepcionado com esta realidade, mais o desfecho dos movimentos políticos de 1848 no qual esteve envolvido, Fritz Müller precisou de um tempo para rever suas condições de vida: sem diploma não podia exercer a medicina, como professor não se enquadrava nas novas diretrizes educacionais, possuía uma família para prover…a alternativa foi emigrar.

Em 1852 embarcou rumo ao Brasil, aceitando o convite de Hermann Blumenau que já conhecia através de sua família.

Instalado na Colônia Blumenau, na Província de Santa Catarina, dedicou-se mais à pesquisa da fauna e flora locais, deixando o exercício da medicina apenas para quando esta era necessária e urgente. Como consequência, na história, raramente é mencionado como médico.

Fritz Müller mostrou através da sua vida, porque proferir um juramento apartado de suas convicções filosóficas e políticas, era inadmissível para ele, mesmo que com isso tivesse de renunciar ao diploma de Medicina e por consequência ao título de médico.

Desconheço seu lamento pela falta do diploma, mas sim, pelos embates que travou ao longo da vida pela manutenção de seus posicionamentos eram de domínio público. Teve alguns arrependimentos, mas nenhum suficientemente forte para fazer dele uma vítima.

Assim, acredito que Fritz Müller renunciou ao diploma de Medicina, não por um revés, mas por sua própria escolha. Era livre para fazê-lo, e fez.

A liberdade era, como inúmeras vezes frisou, o bem maior que um ser humano pode almejar e lutou por ela até seus últimos dias de vida.

Ana Maria L. Moraes

Ana Maria L. Moraes

Pesquisadora e Historiadora