Entre 08 e 15 de novembro de 1862 permaneceu em Desterro o naturalista e entomólogo Francisco de Paula Martínez y Sáez, ( 1835-1908) membro e Secretário da Comissión Cientifica del Pacífico, organizada sob o reinado da Rainha Isabel II de Espanha, de passagem pelo Brasil. Desde a organização deste empreendimento de múltiplos objetivos para o governo espanhol, em 1862, sob o signo da recuperação da tradição científica ilustrada nos antigos territórios coloniais da América e sob a influência de Alexander von Humboldt, registrou-se o nome do Doutor Müller como um dos notáveis no Brasil. Ainda no Rio de Janeiro a Princesa Isabel reforçou a recomendação de que visitassem Fritz Müller na Província de Santa Catarina, quando recebidos pelo Imperador D. Pedro II, que muito os impressionou. Assim que no rumo ao Pacífico, destacou-se a Martínez y Sáez a parada especial em Desterro. Suas especialidades eram do mesmo campo de Müller. Deixou um Diário de Viagem, editado originalmente em 1928. Aqui ele e colegas desta parte da viagem adquirem três fotos, que fazem parte do enorme acervo fotográfico memorial desta Comissão, que produziu resultados científicos muito significativos. Este relato foi escrito de forma sensível e intimista, sem rodeios, como apontam os biógrafos de Martínez y Saéz ser de sua personalidade. São bem poucos os testemunhos diretos encontrados até aqui sobre a vida de Fritz Müller em Desterro. O que é de estranhar diante da forma como sua fama divulgou na Europa o nome da cidade. Dúvidas sobre o exato local onde morou, onde ficava o prédio do Liceu Provincial, quem fazia parte de seu círculo próximo, onde pesquisou e coletou em seus itinerários de campo, como se apresentava e quais seus hábitos pessoais e como era sua vida familiar. Viveu na Ilha de Santa Catarina por onze anos, tornou-se um personagem da história da ciência universal, os estudiosos destacam seu caráter generoso, sua honradez, suas meticulosas e incansáveis pesquisas cientificas sempre fundamentadas e baseadas na observação direta do objeto em estudo, resultando na produção de incontáveis artigos, sua extrema modéstia e recusa às reverências, seu incansável espírito de trabalho cooperativo com seus pares em todo o mundo sem disputas por autoria. Não se precisa repetir a opinião que dele tinha seu dileto amigo Charles Darwin, pois todos conhecem. Há o testemunho insuspeito de seu filho Francis que refere ser Müller quem mais ele estimava dentre todos seus colaboradores que não conheceu pessoalmente. Pesquisadores recentes identificaram mais de trezentos colegas com quem Müller manteve correspondência, em todo o mundo. Feito que ainda hoje com as comunicações instantâneas é espantoso. Quanto a ele e quanto a ver reconhecida sua real importância ainda há um vasto campo que as pesquisas irão revelando, mostrando que todo o esforço que este Grupo juntamente com outras organizações despendeu até aqui para torná-lo mais conhecido e para ser aceito como um personagem notável de nossa história, ainda tem muito que andar. Sua vida, sua obra e seu exemplo merecem ser conhecidos. Deve ser bem notado que neste relato de Martínez y Sáez se permite esclarecer com segurança alguns pontos, como seguem. O local onde o cientista e educador morou enquanto viveu em Desterro, entre 1856-1867. Saia dos muros de sua casa pisando já na arenosa Praia de Fora. Claro que hoje é difícil precisar o exato local da casa face as mudanças ocorridas na região. Ainda que a casa era muito modesta, por certo cedida por algum amigo. Que viviam muito pobremente. Que era um pai e educador amoroso de suas muitas filhas. Que ele era gentil e atencioso e que ficou feliz em receber o visitante. Vamos traduzir a parte do Diário, dos dias 11 e 12 de novembro, que referem diretamente a Müller, para conhecimento de todos, com algumas Notas ao final.
Dia 11. Veio o Dr. Joaquim dos Remédios Monteiro(1) ao Hotel se oferecer para apresentar-me ao distinto naturalista Fritz Müller. Fui com ele ao Liceu Provincial onde conheci ao Professor Fritz Müller que se mostrou muito amável e que me convidou à sua casa situada na Praia de Fora. Este estabelecimento situado num edifício onde funcionou um colégio dirigido pelos Jesuítas é moderno, e se ensinam as matemáticas e o desenho. Depois andei um pouco pela Vila até chegar a hora de ir a casa de Müller. Na entrada do pequeno jardim em frente à casa encontrei umas meninas sumamente amáveis que me levaram até a casa do Doutor.
Sua senhora de modestíssimo traje me recebeu muito bem. Não pude menos que enternecer-me ao ver a pobreza da casa, porém logo compreendi a felicidade que naquela modesta posição vivia esta família. Uma mesa de pinho, um modesto leito, um armário com livros, frascos e bancos, um microscópio(2) e uma caixa de botânica constituíam o mobiliário da casa. Mostrou-me alguns poucos exemplares de moluscos e zoófitos, restos das coleções, formadas em alguns anos, tanto em Blumenau como em Desterro, que havia remetido a Alemanha. Recolhi alguns e outros tantos extratos de periódicos alemães nos quais estavam registradas suas descobertas sobre anélidos e zoófitos(3). Mostrou-me o mar por uma pequena janela da sala e observei que banhava quase os muros da casa, circunstância feliz para os estudos a que se dedicava(4). Me despedi da senhora e das crianças, que, apesar de pequenas apertaram minhas mãos alegremente. Algumas flores europeias, algumas árvores e arbustos, uma palmeira da Ilha de Borbón de folhas em leque etc. constituíam um pequeno jardim onde combinamos fazer excursões no dia seguinte.
Dia 12. As 8,30 hs cheguei na casa do Doutor Müller, que em mangas de camisa e descalço como suas crianças, me acompanharam pela praia arenosa (Praia de Fora).
Encontramos alguns anélidos, poucos zoófitos, moluscos e crustáceos que me entregavam com suas mãozinhas as meninas demonstrando a destreza com que o faziam e seu costume em executá-lo. Por não estar muito baixa a maré e pobre a praia nossa coleta foi bem pouca. Fez-me notar, entretanto um fato curioso, a reprodução por divisão das estrelas do mar. De volta a casa me obsequiaram com um copo de vinho do Porto. Fui para o hotel descansar e a tarde saí com Müller para recorrer a porção da praia entre o cais e o Hospital de Caridade, ou melhor a base da elevação onde está. Recolhemos alguns crustáceos parasitas dos “paguros” que habitam os “cerithium”. Alguns “acalefos”em mal estado(5).
Notas:
Marcondes Marchetti- Coordenador do Grupo Desterro Fritz Müller/Charles Darwin 200 anos
mullerfritz200@gmail.com
© todos os direitos reservados 2021