“ Em que te ei desmerecido oh Pátria minha? ……. Desamparado, dos amigos, do Rei, da Pátria indigna”……

Versos solidários do poema “Camões” de Almeida Garret, de 1825 – contra o que Portugal fizera com o seu maior gênio – Luiz de Camões. Uma distante alusão que lembra Fritz Muller, outro desamparado, na pátria adotiva, o Brasil.

Este artigo será necessariamente mais longo. Quem queira conhecer a história de Fritz Müller compreenderá.    E, também compreenderá por que publicamos um pós texto, ao seu final. Fora dele, para que a ofensa seja expurgada e o ofensor esquecido.

Em 1892 Fritz Müller completava 70 anos, em Blumenau. Ele, havia sido recentemente demitido como Naturalista Viajante do Museu Nacional. Já passara antes por despedida nada honrosa – quando o Presidente da Província de Santa Catarina Francisco Carlos de Araujo Brusque (1859-1861) devolve o monopólio do ensino público aos religiosos, pondo fim a corajosa inovação do ensino laico no Liceu Provincial de Desterro, implementada pelo seu antecessor, o honrado Presidente João José Coutinho (1850-1859).

Seu mais ilustre Professor o Dr. Fritz Müller foi então dispensado. O Presidente   Coutinho, que apoiara a nascente Colônia Blumenau desde 1850, de lá trouxe seu mais brilhante colonizador para dar aulas em Desterro. E generoso e inovador dota o Liceu de um laboratório de química e de física que emociona Fritz Müller. Com mais algum apoio poderia aqui na Ilha estar nascendo uma primeira escola de pesquisas do Brasil. Müller opta e requer então a nacionalidade brasileira.

Mas, claro, este Dr. Brusque ao assumir cuida de ir esvaziando o Liceu de seus objetivos, retira o apoio e manda vender o Laboratório, esta “inutilidade” como sucata.  Bem, ainda hoje se faz isto. Nos anos seguintes entra em declínio o ensino no Liceu e termina sendo devolvido aos religiosos. Esta primeira demissão não causou nenhuma comoção, exceto para o demitido.

Já a segunda demissão causou comoção internacional, dada sua insanidade. Tanto que a revista alemã Die Natur abre campanha pública de arrecadação para ajudá-lo em seus últimos anos de vida. Que ele não aceita.

Além disso o também célebre biólogo e naturalista alemão Professor Ernst Haeckel faz uma coleta de dinheiro. Fritz recebe as notícias em Blumenau e escreve ao Professor “Sobre tudo agradeço sua intenção de ajudar-me. Posso afirmar-lhe que ainda não estamos passando fome e o dinheiro seria melhor empregado AJUDANDO JOVENS CIENTISTAS DO QUE UM VELHO DE SETENTA ANOS COMO EU”.

Na caótica situação imposta pela pátria, que tinha tarefas mais importantes para cuidar, diz-se Müller escreve para um amigo: “Não fosse a minha demissão, o meu aniversário teria passado despercebido. Pelos inúmeros cartões de aniversário posso ver como sou conhecido e respeitado por cientistas distantes, pois vieram cartões até da Austrália, do Barão von Müller, de Melbourn, de La Plata, do Chile, etc. De São Francisco da Califórnia enviaram-me um recorte de jornal com minha fotografia e intitulado Um Naturalista Alemão e a Ingratidão do Governo do Brasil”.

No Brasil, detalhamos uma homenagem que ele recebeu, que honraria qualquer pessoa ainda nos dias de hoje. Coletar as assinaturas pelo país afora, para a homenagem, diz a sua bisneta e biógrafa Brigitta Schmidt, deve ter sido uma grande tarefa. Vejamos o documento que ele recebe em Blumenau:

“ Ilustríssimo Senhor,

Com orgulho olhamos para o mestre, nos seus setenta anos de vida dedicada à ciência, livre de egoísmos ou mesquinharia. O homem distante da civilização moderna, criou o seu oásis espiritual.

O senhor, para nós naturalistas estrangeiros no Brasil, é um brilhante exemplo de puro caráter, e imensa sabedoria. Estamos felizes de poder trabalhar no mesmo campo, orgulhosos de poder chamá-lo de nosso Decano.

Receba os nossos sinceros votos de felicidade. Em tempos difíceis teremos no senhor exemplo de força. Receba o senhor, nesta ocasião, justiça, e a certeza de estarmos ao seu lado, sentindo juntos o que o senhor está passando agora.

Esperamos que permaneça entre nós como uma pedra preciosa em nosso país”.

Assinam: 1. Dr.V.W. Dafert, Engenheiro do Ministério da Agricultura, SP. 2. Oervile A. Derby, Chefe da Comissão Geográfica e Geológica de SP. 3. Alberto Löfgren, Botânico e Metereologista da mesma Comissão. 4 .Eugen Hussak,  Geólogo, idem. 5. Dr. Carlos Hentsch, Médico. 6. B. London Streim, Ferrovia  SP. 7. Carlos Guilherme Friedenreich, Entomologista.  8.    H. Morize, Astrônomo do Observatório Nacional. 9. Juan J. Pinggari, critogamista. 10. Dr. von Ihering, Rio Grande do Sul. 11. Friedrich Moritz Draenert, Consultor Técnico do Min. Da Agricultura. 12. C. Schreiner.  13. Ernst Ule, 14. Eugen Sisserandok, Politécnica do R.J. 15. Paul Ferrand, Escola Superior de Ouro Preto. 16. H. Gorcein, Secretário de Educação de São Paulo. 17. Fr. J.C. Schneider, Meteorologista. 18. Robert Avé Lallemant, médico e explorador alemão. 19. W. Schwake, Diretor. de Botânica da Escola de Farmácia de Ouro Preto. 20. Ernst Lehmann, Escola de Agricultura de Pernambuco. 21. C. Brunnemann, Diretor da Estação Agronômica de Barbacena. 22. Gustavo Edwall, Botânico da Comissão Geológica. 23. Gustavo Königswald, Naturalista Viajante do Museu de São Paulo. 24. Dr. Ernst Yerdes, São Manoel de Botucatu “.

E ainda para mostrar a comoção ditada pelo ato demissionário, mas mais que tudo pelo respeito e gratidão de seus colegas de ciência e de pesquisas, ele recebe uma espécie de Álbum, cuja expressividade beira o suntuoso, o que seria quase um convite a sua exibição pública.

Não para ele, que o coloca na bem modesta sala de visitas de sua casa, mas que lhe faz verter lágrimas amargas.  A revista Die Natur destina o dinheiro coletado na sua campanha, que ele negara receber, para mandar confeccionar este Álbum de Honra, “sustentado por uma estante de madeira com capa de couro e com gravações alusivas à ciência, com animais e plantas   tropicais, os cantos enfeitados com placas prateadas”.

A dedicatória dizia:  “Honrado Senhor, nas próximas páginas o senhor achará imagens de grande número de amigos e colegas, os quais sentem-se unidos ao senhor pelo desenvolvimento orgânico de sua relação mútua. Juntos desejamos toda a felicidade pela data em que completa os seus setenta anos. Todos somos gratos por vossas contribuições para com nossos trabalhos.  Queira viver o resto de sua vida na certeza de ter sido imensamente útil à ciência “.

Custeou o álbum recursos doados por 117 pessoas, dentre cientistas de várias áreas e até de círculos pró Darwin e anti Darwin!. A pesada e valiosa caixa chegou a Blumenau só em outubro daquele ano. O objeto, cujo apreço e a noção de dívida da ciência europeia exprimia-se por seu luxo, não combinou com a mobília da casa, ainda segundo Brigitta Schmidt. Foram precisos dois homens para colocar a grande caixa na casa.

A Livraria R. Friedlander & Sohn de Berlim, à conta de seus amigos, disponibilizou todas as obras científicas que ele precisasse. Bastava solicitar. Outras instituições mandaram livros. Ele então exclamou: “ agora estou nadando num mar de livros”.  A compaixão com o solitário cientista transbordou.

De todos os lados recebia cartões, presentes, elogios, apoios. Naqueles dias escreveu ao seu colega von Ihering “Eu já havia pensado em publicar nos jornais alemães a história da demissão, mas tudo isto é passado, acredito que após a minha morte, talvez alguém queira limpar o meu nome. Provavelmente meu irmão Wilhelm, que estava aqui na época da primeira demissão. Ou então Alfred Möller, quando aconteceu a segunda”.

Várias gerações se passaram desde que ele morreu em 1897. Hoje talvez se possa dizer que ele tem irmãos não só de sangue, mas de destino. Uns porque veem nele um modelo a seguir, a cultuar, a enaltecer. Outros por serem dotados de caráter assemelhado ao dele.

Seria bastante razoável esperar que se conseguisse reparar agora as falhas cometidas no passado, em memória de honra, ao se conhecer um pouco da história deste personagem notável. Seria mesmo uma prova de generosidade moral dos tempos presentes.

— EM QUE TE EI DESMERECIDO OH PÁTRIA MINHA? —

Pós texto. Num jornal do Rio de Janeiro, ainda em 1892, foi publicada esta declaração de uma autoridade: “Fritz só havia obtido benefícios no Brasil, como o seu emprego no Liceu do Desterro.  E como Naturalista na Província de Sta. Catarina, Fritz Müller não cumpriu o seu contrato. Nas Atas em Desterro não se encontrou nenhum trabalho feito por ele. Na verdade, seu cargo teria sido uma farsa”. Talvez a alusão de Fritz Müller a “limpar seu nome” fosse a este tipo de licença que se permitem aqueles que não merecem mais que serem citados uma só vez, e fora de um Artigo como este.

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Marcondes Marchetti

Marcondes Marchetti

Coordenador Geral do Grupo Desterro Fritz Müller Charles Darwin 200 anos